No Ninho do Corvo, ou Estádio Antônio Soares de Oliveira, a 12 quilômetros do aeroporto internacional de Cumbica, em Guarulhos, São Paulo, o barulho do avião que decola abafa os berros que saem do vestiário do time visitante, a Matonense. Ouvem-se os berros por trás da porta de ferro, mas não se distinguem os palavrões de qualquer instrução que o técnico Pinho esteja passando aos atletas. A 20 metros dali, no campo, dois garotinhos de seus 7 anos se revezam em chutes a gol, enquanto o jogo não começa. A cada bola que acerta, um, com a camisa da italiana Juventus e chuteira da Nike, comemora com um sonoro “goool!” e rola na grama. São filhos de jogadores do Flamengo, o time da casa. Não o carioca, da primeira divisão nacional. E sim o paulista, da terceira divisão estadual, em que os jogadores ganham menos que garçons e assistentes de obra.
A desigualdade entre os Flamengos é abissal. O carioca arrecadou R$ 334 milhões em 2014. O de Guarulhos, no mesmo ano, conseguiu 0,02% disso, R$ 59 mil. A diferença tem relação direta com os elencos. Eis a escalação do Flamengo que encara a Matonense neste domingo: Wagner no gol; Arthur, Carlão, Igor Prado e Biro Biro na defesa; Wellington Carioca, André Bilinha e Fernando Júnior na meia; Milton Junior, Ingro e Daniel Bueno no ataque. Não conhece ninguém? Não se culpe. Os jogos são transmitidos por rádio só para algumas cidades do interior do Estado. Nada de TV aberta nacional. Se o peruano Paolo Guerrero, sozinho, leva milhões de reais por ano do Flamengo do Rio de Janeiro, a folha salarial total do Flamengo de Guarulhos, em R$ 46 mil, permite pagar salários de cerca de R$ 700 mensais para cada jogador por quatro meses, tanto quanto recebem quatro em cada cinco jogadores de futebol profissionais no Brasil. Esses atletas ganham menos que ascensorista. O craque em Guarulhos é o veterano Daniel Bueno, de 32 anos, 1,84 metro de altura, 80 quilos. Artilheiro do time em 2016, com três gols em seis jogos até ali. Dentro do vestiário, antes do jogo, ele veste a camisa rubro-negra e amarra os cadarços da Adidas tão suja que mal se percebem as três listras.
Caminham para lá Rafael Piauí e Bartô. Ambos usam bonés com aba reta, camisetas coloridas, shorts e chinelos. Nenhum dos dois jogará. O primeiro, atacante, rompeu ligamentos do joelho em um jogo-treino em dezembro. Está fora da competição. Teve sorte de manter o emprego até o fim do estadual. O segundo foi eleito o melhor lateral-direito da terceira divisão pelo Tupã em 2015 e jogou como titular cinco dos seis jogos do Flamengo-SP em 2016, mas seu desempenho caiu e ele nem sequer foi relacionado pelo técnico Edson Vieira para esse jogo. Também se estranhou com a diretoria, depois que contou ter uma proposta para jogar no Nacional, da capital, e se mudar para a segunda divisão de Portugal no segundo semestre. Quis ir, mas desistiu. Diz ter preferido manter a palavra que deu ao técnico ao chegar ao clube. Piauí e Bartô entram no vestiário e na roda de flamenguistas já uniformizados. É hora de concentrar.
“Eu não gosto de sentir o cheiro de derrota! Não deixa cair! Vambora!”, discursa o técnico, no meio da roda. “Vamos dar o sangue! Sem bobear! Sem sair atrás!”, grita Carlão, zagueirão e capitão do time. “Pai nosso que estais no céu! Santificado seja o vosso nome!”.Os 20 atletas, técnico, assistente e preparador físico, todos agarrados e carrancudos, berram a oração. Batem palmas. Saem, um por um, e marcham para o túnel que leva ao campo. As pisadas mais fortes que o necessário reforçam o humor beligerante. Passam por uma barata morta, uma parte escura do corredor com lâmpada queimada e sobem para o gramado. De longe, todo verdinho. Basta se aproximar para notar no mínimo três espécies diferentes de grama e perceber os buracos. Aguardam o jogo 638 torcedores, acomodados com espaço, que gritam e tomam picolés de R$ 2.
O último a subir é Daniel Bueno. Corre para o centro do campo. Às 10h02, começa a partida, e o primeiro toque na bola é dele. Mais uma vez, vai tentar provar a técnicos, dirigentes e torcedores que ainda tem futebol a mostrar. Daniel Bueno, paulista de Tietê, jogou mais de 180 partidas como profissional desde 1998, quando ingressou no Atlético Sorocaba. Seu auge veio em 2004, quando fez parte do grupo do Santo André que levantou a taça da Copa do Brasil contra o Flamengo – o do Rio de Janeiro, uma façanha, em pleno Maracanã. No currículo, tem ainda o Noroeste e clubes estrangeiros: Omiya Ardija (Japão), Sigma Olomouc (República Tcheca), Odra Wodzislaw ŚŚląski (Polônia) e Tarxien Rainbows (Malta). A mulher, Cássia, e a filha, Larissa, ainda criança, tentaram acompanhá-lo no exterior. Na República Tcheca, a vida foi relativamente tranquila – o clube tinha mais estrutura, provia tradutora, e outros brasileiros ajudaram na adaptação. Na Polônia, não. Embora a menina se divertisse com um trenó de madeira na neve, a família morena de cabelo preto sofreu com o choque linguístico e cultural, além de ter se considerado discriminada num país de gente loura. Daniel Bueno apontava para a foto no cardápio para conseguir um sanduíche. Quando dava certo, passavam um tempo só comendo ali. A vida complicou quando os vistos para Cássia e Larissa foram recusados. Elas voltaram, ele ficou.
Após cinco temporadas em Malta, Bueno retornou ao Brasil em 2015 para jogar na primeira divisão do Campeonato Paulista pelo XV de Piracicaba. Fez seis jogos, um gol. O XV, como 670 outros clubes de futebol profissionais no Brasil (num universo de 771), não tem calendário para jogar o ano todo. O time contrata em dezembro, treina em janeiro, disputa o Estadual de fevereiro a abril e, uma vez eliminado, fecha as portas. Dispensa todo mundo porque não tem jogo a partir de maio.
O gol e os seis jogos não abriram para Daniel Bueno as portas de nenhum outro clube. Ele entrou numa outra estatística do futebol brasileiro. No ano passado, dos 28 mil atletas profissionais registrados pela CBF, mais de 11 mil ficaram sem contrato no decorrer do ano. É uma taxa de desemprego de 59%. Bueno fez o que todos os outros fazem: teve de ganhar dinheiro de outra forma. “Deu uma luz na minha irmã com meu cunhado, eles abriram um bar na cidade onde nasci, e ela me chamou para trabalhar lá”, conta. Vendia salgadinhos, servia cervejas e pedia ajuda aos clientes para aprender a preparar os drinques que eles queriam.
Trazido de volta ao futebol pelo técnico Edson Vieira no Flamengo-SP, Daniel Bueno tem no jogo contra a Matonense uma oportunidade de voltar à profissão que pratica há 18 anos. Querem os três jornalistas a relatar a partida da cabine do estádio que algo de interessante aconteça. Nada. Tanto Edson Vieira quanto Pinho, técnicos do Flamengo e da Matonense, são expulsos. Gritam descontroladamente e alguns jogadores começam a dar entradas mais duras. Mas de futebol, mesmo, zero. Daniel Bueno se mete entre os zagueiros adversários, mas a bola não chega. Volta para buscar jogo, mas não tem colegas livres com quem tabelar. O ponto alto vem em uma cobrança de falta da Matonense. Guilherme Pit mete a bola na área e Medina cabeceia no canto direito da baliza rubro-negra. O bandeirinha ergue os braços, e a árbitra Regildenia de Moura anula o gol. A torcida comemora. Uma senhora que torce para a equipe de Matão se revolta. “Ladrona!” (sic) e “Vai lavar louça!” são as ofensas mais leves de uma sequência.
Torcedores se debruçam sobre as grades de tinta vermelha descascada para xingar. Todo mundo. Do goleiro de Matão ao goleiro de Guarulhos. Um fanático toca numa ferida exposta para jogadores de futebol. “Sabe por que você joga a A3 do Paulista? Sabe por que você está com dois meses de salários atrasados? Porque você é um merda!” O Flamengo está com pagamentos em dia, segundo Bueno. Mas muitos outros não estão. Do clube em que jogou entre 2009 e 2010 na Polônia, segue sem receber. Piauí, o do joelho machucado, depois de jogar em sete times pequenos desde 2010, diz que é comum passar dois meses até que um seja pago. Em um desses times, conta Piauí, certa vez os atletas cercaram o presidente no vestiário para cobrar os pagamentos. O dirigente disse que não tinha dinheiro para pagá-los, e os ofendeu: “Se vocês fossem bons, não estavam aqui, estavam no Flamengo” (o carioca, claro). O clube ofereceu a Piauí pagar um terço do que havia prometido. Ele aceitou – achou melhor aquilo do que tentar a sorte na Justiça. Há relatos de jogadores que esperam até dez anos para receber.
Aos 43 minutos do primeiro tempo, a bola sobra para Daniel Bueno, próximo ao círculo central, e ele tenta dominar. Perde para um adversário e vai atrás. Corre até a defesa do próprio time para tentar recuperar a jogada. Sobrancelhas arqueadas e dentes à mostra. Na garra. “Sai daqui, Daniel!”, berra um colega da defesa do Flamengo uma, duas, três vezes. O auxiliar técnico Rogério Delgado, substituto do técnico expulso, faz coro. A bola é chutada para longe por um defensor, sem que os esforços do atacante tenham ajudado. A árbitra apita. Fim do primeiro tempo. Todos voltam ao túnel escuro.
O Flamengo retorna com mais energia para o segundo tempo com as entradas de Bruno Sacomani, Tom e Guilherme Panambi. Bueno continua a batalhar até por jogadas que não parecem ter efeito prático. Aos dez minutos, a bola voa para muito alto na lateral da defesa da Matonense. O centroavante, fora da posição, olha para o alto, acompanha a trajetória e acerta um chute meio esquisito quando a pelota cai. A torcida gargalha.
Aos 20 minutos, um funcionário do Flamengo, um senhor negro de costas arqueadas e cabelos brancos que faz o papel de gandula, grita para o preparador físico rubro-negro que ajuda atletas a se aquecer fora das quatro linhas. “Ei! Não tem um centroavante melhor para colocar, não?!” Outro funcionário do clube, também de cabelos brancos, no setor das arquibancadas vazio, desiste de ficar sentado ao lado do placar. É papel dele virar a placa do “1” para cima do “0” se sair algum gol. Não sai. Regildenia apita de novo. É o fim da partida naquela manhã nublada. Bueno é o primeiro a sair. Abaixa a cabeça, solta palavrões, cospe de lado e volta para o túnel.
O empate por 0 a 0 naquele domingo, dia 20, pôs o Flamengo na vice-liderança da terceira divisão – perdeu a chance de encostar no líder Atibaia, mas passou o São Carlos. Não há muito a comemorar. Daniel Bueno, depois de tomar banho e voltar à camiseta e ao short brancos do dia a dia, vai retornar ao apartamento que divide com Igor, a algumas ruas do estádio, alugado pelo clube. Talvez saia para comer uma esfiha com o colega, luxo a que se dão de vez em quando. Tem saudade da família. Daniel Bueno conseguiu viajar para Sorocaba, onde vivem Cássia e Larissa, só algumas vezes depois que voltou ao futebol pelo rubro-negro paulista. Eles se viram no Ano-Novo e no Carnaval, dois dias de cada vez. A menina tem 10 anos, e a mulher, aos 36, voltou a trabalhar em um colégio particular como auxiliar de coordenação. Com alguma frequência, as duas pedem a Daniel Bueno que se aposente do futebol. Ele nega. Diz ainda ter futebol para mostrar por mais quatro anos. “Somos compreensivas ao máximo”, diz Cássia. Não que a realidade, hoje, seja muito diferente de quando eles se conheceram, em Sorocaba. A distância incomoda desde o início do namoro. É o preço cobrado pelo futebol profissional. Mas o maior problema é o futuro. A mulher o estimulou a se educar, mas Daniel Bueno não conseguiu estudar mais nada por causa das mudanças. Ele terá emprego enquanto o Flamengo de Guarulhos estiver no campeonato. Assim que o juiz apitar para o time pela última vez em 2016, ninguém sabe.